Já recomposto da confusão que tinha sido aquele banho. Artur já vestido e cheiroso, preparava-se agora para sair de casa. Da dispensa tinha tinha apanhado alguns sacos para ir às compras e voltando à cozinha, pegou numa lista de compras que tinha feito. Depois, guardou o telemóvel no bolso, juntamente com as chaves do carro e saiu de casa.
Quando já na entrada do prédio, trancava a porta da sua casa, o seu vizinho do lado também saiu na companhia do seu cãozinho. Um cão que não ia com a cara de Artur, mas o sentimento era mutuo. Como não podia deixar de ser, o cão ladrou e ladrou sem parar quando Artur cumprimentou o vizinho. E o senhor, que era sempre muito simpático com Artur e até mesmo com a Mónica, apenas disse o seguinte:
— A noite de ontem foi longa!
— Desculpa!? — disse Artur confuso com aquela afirmação. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça, foi a do vizinho a espiar pelo buraquinho da porta, e a ver tudo o que se tinha passado ontem à sua porta. — O que foi que disse?
— Disse-lhe que a noite de ontem, parece que foi a mais longa e quente deste ano. — disse o senhor pegando no cachorrinho ao colo para ver se ele se calava. — Não sentiu?!
— Ah! Sim! Senti. — disse Artur aliviado por o vizinho estar apenas a falar do calor insuportável que tinha estado na noite anterior.
— E dizem que esta noite vai ser a mesma coisa. — continuou o senhor.
— Pois! Parece que o verão chegou mesmo para matar. — disse Artur. — Eu vou descendo.
— Vai! Não precisa esperar por mim.
O seu vizinho já era um senhor de uma certa idade. Já era viúvo desde há alguns anos e agora, tinha arranjado um cãozinho para lhe fazer companhia. Ele até era muito simpático mas andava muito lento. Por isso é que Artur quis seguir logo em frente. Como o prédio estava sem elevador, se Artur acompanhasse o senhor através das escadas, para assim conversarem mais um pouco, coisa que era frequente quando se encontravam no elevador, os dois iriam demorar uma eternidade até chegar lá baixo. Por isso, num passo mais largo, Artur desceu as escadas e quando finalmente chegou ao fim, pensou no sacrifício que iria ser, ter que subir depois aquelas escadas todas com os sacos de compras cheios. Bem! Na verdade ele não fazia questão de comprar muitas coisas. Os sacos não iriam ficar muito pesados mas Artur odiava subir as escadas. E isso fez com que ele deixasse uma nota mental na sua cabeça, dizendo que mais tarde, teria que reclamar com o administrador do prédio, por ainda não ter arranjado maneira de contactar alguém para arranjar o maldito elevador.
No carro, a caminho do supermercado, Artur foi ouvindo as noticias. Ouviu realmente aquilo que o seu vizinho já havia dito. De que esta noite as temperaturas iriam continuar a ser muito altas. E essa noticia, com mais a lembrança de ontem ter rebolado e rebolado na cama a morrer de calor, lá o convenceram de que era desta que ele iria comprar uma ventoinha. Ele não queria fazer hoje despesas extras mas a ventoinha já se estava a tornar um utensílio obrigatório para ter em casa. Por isso, ia procurar nem que fosse a ventoinha mais barata mas esta noite, ele não iria passar pelo mesmo martírio da noite anterior.
Quando já estava próximo do supermercado onde ele ia com mais frequência, devido aos preços baixos, Artur reparou que estava mesmo a passar pela escola de Miguel. Olhou depois as horas no seu carro e viu que faltavam poucos minutos para o exame terminar. E ao verificar tudo isso, o primeiro pensamento dele foi parar ali o carro e ficar para ver se Miguel tinha ido fazer o exame. Com esse pensamento na cabeça, a vontade dele foi mesmo pisar fundo no acelerador e ir-se embora dali de uma vez por todas mas não, o pensamento de parar falou mais alto. Tudo o que ele mais queria naquele momento, era evitar o Miguel. Evitar a sua presença e evitar ainda terem que falar daquele assunto que ficou por falar na noite anterior. Artur sabia que lhe tinha prometido que iriam depois falar sobre aquele beijo roubado, sobre os sentimentos que Miguel dizia ter por ele, mas que Artur sabia que era apenas coisa de criança. Artur sabia que mais cedo ou mais tarde, iria ter aquela conversa com Miguel mas ele ainda não estava preparado para isso. Preferia nunca mais ter que conversar sobre isso. Mas se por um lado, ele naquele momento queria evitá-lo, uma parte do pensamento de Artur dizia que não havia mal nenhum ele parar e ver se o Miguel tinha ido ou não fazer o exame. Afinal de contas, os dois tinham trabalhado imenso para que o jovem fosse e tivesse positiva no exame de matemática. Artur nem sequer queria imaginar, que por causa daquele drama da noite anterior, Miguel optasse por não ir ao exame. Optasse por ficar em casa deitado e quem sabe a chorar. A sofrer por um amor não correspondido. Se isso realmente fosse assim, Artur iria sentir-se pessimamente mal. Por isso, quando viu um lugar vago para estacionar, bem junto à escola, Artur estacionou o carro e desligou o motor. Uma vez mais veio o pensamento de que era um erro o que ele estava ali a fazer mas não, ele tinha mesmo que confirmar se o Miguel tinha ido e se tudo tinha corrido bem.
Dentro do carro e mesmo com a janela aberta, Artur sentiu calor e por isso, optou por sair dele. Foi encostar-se ao seu carro e quando ouviu o toque da campainha tocar, começou a ver uns primeiros alunos a sair. Alguns deles saiam com um olhar triste. Com um olhar de que as coisas tinham corrido mal e que por isso, teriam que voltar a estudar para a segunda fase. Havia também quem saísse pelo portão da escola com um ar de satisfação e outros até aos pulos e eufóricos. Artur só não percebeu se esses super animados estavam assim porque o exame tinha corrido bem, ou se era apenas porque aquele era o primeiro dia de férias que estava agora a começar. Foram muitos os alunos a saírem da escola mas por entre tantos jovens, Artur não conseguiu avistar Miguel e aos poucos, eram cada vez menos os alunos que saiam. Artur começou a ficar convencido de que o filme que tinha feito na cabeça, era afinal real. Como não o viu a sair da escola, ele achou que Miguel tinha desistido de tudo. Tinha ficado em casa a chorar, a desesperar e a achar que aquele era o fim do mundo. Artur sempre achou que Miguel não tinha perfil para desistir facilmente das coisas mas Artur também nunca imaginou ver Miguel no estado em que estava ontem. A chorar e a soluçar como uma criança. Uma criança perdida, indefesa e que tudo o que mais queria era um abraço.
Houve mais uns quantos alunos que saíram muito tempo depois mas nada do Miguel. Naquele momento, Artur arrependeu-se por na noite anterior, não ter dado a atenção necessária a Miguel. Arrependeu-se de não ter falado com ele, de não o ter levado a casa. Enfim! Artur nunca iria se perdoar se Miguel tivesse realmente desistido de tudo mas isso era o que parecia. E já farto de esperar, Artur optou por voltar para dentro do carro. Sabia que não iria encontrar Miguel à saída daquela escola mas... afinal ele estava enganado. Quando estava para entrar no carro, Artur avistou Miguel lá ao longe a sair de um dos pavilhões da escola. Estava acompanhado por uma bela moça. Uma rapariga mesmo muito gira, de cabelo comprido e liso. Uma ruiva de pele clara, alta e magra mas era uma magreza que lhe ficava muito bem. Tinha no corpo, uns calções de ganga curtíssimos e um top que ia até ao umbigo. Pela beleza e pela proximidade dos dois, Artur concluiu de imediato que aquela, só podia ser a rapariga que muitas vezes acompanhava Miguel ao cabeleireiro da Mónica. Rapariga essa que a Mónica estava convencida ser namorada de Miguel. E talvez, quem os visse agora ali, ao longe, bem juntinhos e até de mãos dadas, fosse de imediato concluir que os dois eram um casal de namorados. Um casal muito bonito por sinal, pois os dois combinavam muito bem um com o outro. Mas não! Artur agora tinha a certeza que aquela não era a sua namorada. Miguel era gay e Artur já tinha a certeza absoluta em relação a isso mas de qualquer forma... havia ali qualquer coisa de estranho. O modo como os dois andavam, balançavam de mãos dadas, sempre a olharem um para o outro com uma enorme cumplicidade. Ao ver aquela cena, até Artur ficou confuso. Mas ele não quis dar importância a essa confusão. O seu objectivo já havia sido comprido. Artur já tinha a confirmação de que Miguel tinha ido fazer o exame e pela alegria dos dois, era sinal de que as coisas tinham corrido bem para ambos. Por isso, não havia ali mais nada a fazer. Estava na hora de ir embora mas quando Artur estava para entrar no carro, o seu olhar cruzou-se com o de Miguel e nesse instante, ele não foi capaz de entrar no carro e ir embora a correr. Isso iria ser muito estranho. Iria dar a sensação de que ele estava ali apenas a espiá-lo. E por isso, quando já à saída do portão da escola, Miguel o viu e sorriu para ele, Artur acenou-lhe a mão e foi encostar-se novamente ao carro. Naquele instante e devido à distância, Artur não conseguiu perceber o que Miguel e a rapariga falaram, mas da forma como ambos olharam apara ele, deram-lhe a sensação de que os dois estavam a falar de si e isso deixou-lhe bastante desconfortável. Por momentos, sentiu que os dois estavam a rir-se dele e quando sentiu isso, só teve vontade de ir embora mas lá continuou. Os dois ainda falaram mais algumas coisas mas depois, com um beijo na boca, os dois jovens se despediram-se e foi cada um para o seu lado. A rapariga seguiu em frente no sentido contrário e Miguel aproximou-se de Artur, que ainda estava confuso com aquilo que tinha acabado de ver, Miguel a beijar na boca a sua colega.
— Olá! — disse Miguel parando mesmo em frente de Artur que respondeu logo de seguida.
— Olá!
— Vieste confirmar se eu vinha mesmo fazer o exame? — perguntou ele, deixando com que Artur fica-se um pouco sem palavras.
— Não! Eu... Eu estava aqui de passagem e ao ver-te, achei por bem parar para saber se tinha corrido bem.
— Sei! — disse Miguel com ar de quem não estava acreditar na sua palavra.
— E então? — continuou Artur. — Como é que correu?
Por momentos Miguel nada lhe disse. Quis criar ali um momento de suspanse pois conseguiu perceber que Artur estava mesmo curioso em saber como tinha corrido. Mas depois não resistiu. Com um sorriso rasgado no rosto, lá acabou por dizer.
— Correu muito bem. E graças a si.
— Não! — interrompeu Artur. — Tudo isso graças a ti que és um miúdo inteligente.
— Eu não sou nenhum miúdo! — disse de imediato Miguel ao ouvir as palavras de Artur e com um ar bastante sério. Com toda aquela frontalidade, Artur já nem soube o que dizer. Percebeu de imediato que o assunto que ele não queria de forma alguma ter com Miguel, iria saltar à baila. Mas não! Por momentos ficaram ambos em silêncio e Miguel não aprofundou ainda mais a sua afirmação o que por momentos, deixou Artur aliviado. Mas Artur sabia que mais cedo ou mais tarde, eles iriam mesmo ter aquela conversa. Para já, Miguel limitou-se apenas a perguntar, já com o sorriso novamente no rosto. — Já que estavas por aqui de passagem, ias para onde, posso saber?
— Eu ia ali ao supermercado. Vou ter que fazer umas compras.
— Óptimo! — disse Miguel. — Eu também vou ter que passar por lá para comprar umas coisas. Vamos?!
E sem que Artur estivesse à espera, Miguel entrou de imediato no carro, no lugar do pendura, deixando Artur de boca aberta e sem saber o que fazer.
— E então?! Não vamos? — disse Miguel ao ver a demora de Artur em entrar no carro. E quando Miguel já estava para fechar a sua porta, Artur agarrou nela dizendo:
— Eu acho que é melhor...
— Calma! — disse Miguel interrompendo-o. — Eu não te vou morder. Só estou a pedir uma boleia até ao supermercado, pode ser?
Artur ainda não estava convencido. A ideia de estar num espaço tão pequeno, com um jovem que lhe tinha roubado um beijo na noite anterior, não lhe agradava nem um pouco. Mas Miguel já estava bem acomodado no seu banco. Não havia agora maneira de o tirar de lá e por isso, Artur limitou-se apenas a fechar a porta do carro e a entrar logo de seguida no seu lugar.
A distancia entre a escola e o supermercado era curta, muito curta. Não dava para ter qualquer conversa e realmente os dois não tiveram. Durante a curta viagem, limitaram-se a estarem calados. E enquanto que Artur esteve sempre com um olho na estrada e outro em Miguel, para já estar preparado caso o jovem tentasse algo contra si, Miguel estava ali, mas era como se não estivesse. Durante todo o tempo olhou apenas pela janela. Em momento algum virou a sua cabeça, o seu olhar para ir de encontro ao olho de Artur que não parava de o espiar. Artur ficou aliviado por saber que Miguel não estava ali sempre a olhar para ele, com aquele mesmo olhar aterrador da noite anterior mas houve ali qualquer coisa que deixou Artur bastante incomodado. Por momentos Artur achou que Miguel estava ali a ignorá-lo por completo. E tal como qualquer pessoa, Artur também não gostava nada de ser ignorado.
Quando chegaram à rua do supermercado, havia muitos lugares disponíveis para estacionar mas em vez de Artur fazer isso, ele limitou-se a encostar o carro na berma da estrada e a ligar os 4 piscas do carro. E só nesse momento em que os seus olhares se cruzaram. Achando estranho o facto de não estacionar, Miguel perguntou-lhe:
— E então? Não vais estacionar?
— Eu... — começou por dizer Artur, um pouco confuso. — Vai tu! Eu depois passo mais tarde por aqui para fazer as minhas compras.
— Como assim? Não estou a perceber! — disse Miguel ainda mais confuso. — Porque não vens agora que cá estamos?
— É que...
Artur tentou arranjar uma explicação para não sair com ele e irem juntos ao supermercado mas a verdade é que ela não tinha uma explicação lógica. Ele já estava ali à porta do supermercado. Era só sair do carro, fazer as compras e voltar para ir para casa mas havia ali qualquer coisa que o impedia de fazer isso e ele não soube explicar. Mas Miguel lá acabou por perceber tudo.
— Ah! — disse Miguel — Já estou a ver! Tu tens vergonha de estar comigo é isso?
— Não! Claro que não! — disse Artur parecendo surpreso com a questão de Miguel.
— Tu tens medo de estar ao meu lado? — continuou Miguel.
— Não! Não sejas parvo! Não é nada disso é que...
E mais uma vez Artur não conseguiu explicar o porque de um momento para o outro desistir de ir fazer compras. Será que apesar de negar, a companhia de Miguel deixava-o um pouco perturbado? Seja lá o que fosse, depois de ver o olhar reprovador de Miguel, Artur lá decidiu estacionar o carro no primeiro lugar vago que encontrou. E sem dizer mais nada, desligou o motor, pegou nas chaves o nos sacos que estavam no banco de trás e quando estava para abrir a porta, Miguel disse o seguinte:
— Tu não precisas ter medo de mim.
— Não é isso! — disse Artur sem conseguir olhar para Miguel e pronto a abrir a porta. Mas Miguel continuou.
— Ouve?! Se tu não quiseres, aquilo que aconteceu ontem nunca mais vai voltar a acontecer.
E sem dizer mais nada, Miguel foi o primeiro a abrir a porta e a sair do carro. E Artur ainda mais confuso olhou para ele a aproximar-se da entrada do supermercado. E talvez, com aquela ultima afirmação do jovem, Artur pudesse achar que podia estar mais aliviado em relação às intenções do jovem ladrão de beijos mas não, houve qualquer coisa na sua afirmação que o deixou ainda mais confuso. E sim! Deixou-o com medo. Aquele “Se tu não quiseres” deixou-lhe a pensar e naquele curto espaço de tempo ele chegou a uma terrível conclusão. Mesmo sem querer, Artur já estava a dar esperança àquele jovem apaixonado, de que algo entre eles poderia acontecer. E pior! Naquele momento o Miguel já estava convencido de que se houvesse um novo beijo entre eles, esse beijo ia partir do Artur. Por isso aquele “Se tu não quiseres”. Miguel apenas estava a pedir a Artur para ter calma, para ficar descansado pois ele não lhe iria roubar mais nenhum beijo. Não iria fazer isso pois já sabia que um dia era Artur quem iria querer beijá-lo e Miguel era paciente. Ia saber esperar o tempo que fosse. E com essa horrível conclusão na cabeça, Artur só pensou em ligar novamente o motor do carro e zarpar dali para fora. Mas depois lembrou-se que ele era um adulto. Se havia ali uma criança a ter direito a atitudes menos correctas era o Miguel e não ele. Por isso não havia o que fugir. Não havia o que ter medo. Artur era adulto e sabia muito bem aquilo que queria e o que não queria. E naquele momento, se havia ali certeza bem vincada na sua cabeça, era a certeza de que nada mas mesmo nada iria acontecer entre eles. Por isso não havia o que recear. Artur saiu do carro e seguiu em direcção a Miguel. Ou melhor! Seguiu em direcção à entrada do supermercado, que era onde Miguel já o aguardava.
Mesmo sabendo que não iria comprar muitas coisas, Artur em vez de um cesto de compras, optou por um carrinho. E depois, seguindo a ordem que tinha na sua lista de compras, foi colocando um a um dos artigos no carrinho. Miguel apenas o seguia por entre os corredores do supermercado que àquela hora, tinha umas duas pessoas a fazerem o mesmo que eles. Se bem que Miguel nada estava a pegar para levar. Apenas acompanhava e de vez em quando, era mesmo ele quem comandava o carrinho de compras de Artur.
Os dois ainda ficaram um bom tempo a andar pelos corredores mas durante todo esse tempo, nada disseram um ao outro. Estavam ali juntos a fazerem compras mas era como se não estivessem. Havia ali um profundo silencio entre eles que com certeza, devia incomodar a ambos mas nenhum quis dar a primeira palavra. Artur limitou-se a pegar apenas nas coisas que tinha na lista e quando já tinha chegado ao fim é que lembrou-se talvez do mais essencial, a ventoinha. Ele sabia que aquele supermercado vendia umas ventoinhas baratas mas quando andou à procura delas, não as via em lado nenhum. Perguntou a uma funcionária que se cruzava com eles mas ela lá deu-lhe a triste notícia de que o artigo estava esgotado. Parece que não era dessa que Artur teria um ar fresco no seu quarto durante a noite.
Já com tudo no carrinho, os dois dirigiram-se até à caixa e só mesmo nessa altura é que Artur percebeu que Miguel não tinha pegado em nada. E também só nessa altura é que voltaram a falar.
— Mas não vais levar nada?
— É que eu me esqueci do que tinha para comprar. — disse Miguel. — Para a próxima já sei. Faço uma listinha como o senhor Artur.
— Para de me chamar de senhor. — disse Artur colocando as primeiras compras no tapete da caixa. E no momento em que Miguel começou a ajudá-lo a colocar os artigos no tapete, as suas mãos se tocaram e quando o olhar de ambos ia novamente se cruzar, aquele momento foi interrompido com a fala do operador da caixa.
— Bom dia! — disse ele. — Têm cartão cliente?
— Sim! Tenho! — disse Artur olhando para o jovem e pegando depois na sua carteira do bolso. E enquanto procurava pelo cartão, Artur percebeu um clima estranho por ali. Por momentos, Artur achou que Miguel deixou de sentir a sua presença pois agora, Miguel só tinha mesmo olhos para o jovem operador de caixa. Um jovem simpático, bonito, que já tinha atendido várias vezes o Artur. Um jovem com os seus 20 anos que não ficou nada intimidado com o olhar intenso de Miguel, muito pelo contrário. Enquanto passava os artigos pelo leitor, o jovem trocava olhares com Miguel. De vez em quando olhava também para Artur, mas rapidamente o seu olhar e o seu sorriso voltavam para Miguel que não parava de olhar para o jovem. E mais! Para além de olhar, com aquele estranho olhar guloso, de vez em quando Miguel passava a língua pelos seus lábios. Sem dúvida alguma, havia ali qualquer coisa entre aqueles dois jovens à flor da pele e pela segunda vez em pouco tempo, Artur sentiu-se ignorado. E mais uma vez ele não gostou de sentir-se assim.
No final das contas, Artur pagou o que devia e o operador de caixa despediu-se deles com um:
— Volta sempre!
E Artur percebeu de imediato que aquele “volta sempre” não era para ele. Era sim para o Miguel, que com um sorriso de orelha a orelha, despediu-se do jovem apenas com o olhar.
Com a ajuda de Miguel, Artur levou os sacos das compras para o carro e foi só nesse momento, quando ambos já estavam junto ao carro, é que Artur sentiu que voltou a existir para Miguel.
— Eu não quero abusar mas será que podes dar-me boleia até casa? — perguntou Miguel. — Eu moro aqui perto. O desvio não vai ser grande.
Mas Artur nem lhe disse que sim, nem mesmo um não, limitou-se a ficar calado e a arrumar as compras no carro. Por isso Miguel acabou por concluir que ele não se importava de dar-lhe boleia. E quando as compras já estavam todas no carro e ambos entraram nele, é que Miguel lembrou-se.
— É isso! — disse ele. — Já sei o que tinha para comprar. Podes esperar aqui por mim só por um segundo, para eu ir até a loja buscar.
Artur fez-lhe cara feia mas mais uma vez não respondeu.
— Eu prometo ir num pé e voltar noutro.
E Miguel saiu do carro. Mas antes de correr novamente para a entrada da loja, ele através da janela do carro disse:
— Vais esperar por mim, não vais?
— Vai lá! — disse Artur já chateado. — E não te demores.
E Miguel foi, deixando Artur sozinho ali no carro. Sozinho e a pensar com os seus botões. Porque razão ele haveria de esperar por Miguel? Porque teria ele que dar-lhe boleia até casa? Essas foram apenas algumas perguntas que surgiram na sua cabeça. Artur estava um pouco chateado. Chateado porque detestava que lhe mentissem. E claramente, o Miguel não tinha parado de fazer outra coisa se não mentir. Mentiu quando ofereceu-se para acompanhar até à loja a dizer que também tinha compras para fazer e agora, Artur tinha a certeza absoluta de que Miguel tinha voltado a mentir. Para Artur, ele não tinha voltado àquela loja para comprar seja lá o que fosse. O único motivo para ele ter voltado, seria apenas para poder continuar a flertar com o jovem da caixa. Com certeza iriam trocar números de telemóveis e isso era algo que Artur não estava a gostar nada. Não que ele fosse contra o facto de os dois andaram a namoriscar e a trocarem números de telemóvel. O que ele não gostava era de mentiras e ele sabia que Miguel tinha mentido. E agora estava frustrado porque tinha dado a entender de que sim, iria esperar por ele para o levar a casa e por isso, não tinha agora coragem de ir embora sozinho. Mas afinal Artur estava enganado. Miguel não tinha mentido.
Pouco tempo depois, Miguel voltou a entrar no carro e consigo, trazia um saco com qualquer coisa que Artur não conseguiu perceber o que. Mas seja lá o que fosse, Miguel tinha mesmo comprado algo e isso, fazia com que Artur se sentisse mal por duvidar da palavra do jovem.
— Podemos ir? — perguntou Miguel e Artur ligou o carro para partirem.
Passado um tempo, os dois já estavam à porta do prédio de Miguel. Um prédio alto, bonito e só para gente que tinha muito dinheiro.
— Obrigado pelo boleia.
— De nada! — disse Artur à espera que Miguel saísse do carro mas não. Miguel lá ficou. Era como se estivesse à espera de algo e Artur apercebeu-se disso. Mais uma vez Artur sentiu que aquele ia ser o momento em que inevitavelmente, teriam que falar sobre o que tinha acontecido ontem. E talvez Miguel não dizia nada naquele momento porque estivesse à espera que Artur desse o primeiro passo. E de facto até deu. Com muito custo, Artur quis conversar sobre o assunto apenas para dar um ponto final nesse tema. Um ponto final nesse clima constrangedor. Os dois já se conheciam há seis meses, mas agora era como se não se conhecessem e isso era estranho. Muito estranho. Por isso, de forma a quebrar com aquele silêncio, Artur disse o seguinte: — Eu sei que ontem prometi que falaria contigo sobre o que aconteceu ontem e... eu não estou a fugir do assunto só que...
— Eu hoje faço anos! — disse Miguel assim de repente.
— Tu fazes o que? — perguntou Artur confuso.
— Hoje é o meu aniversário.
— A sério?
— Sim! Eu faço 18 anos.
Dezoito anos, pensou Artur. Afinal, aquele miúdo que estava ali ao seu lado já não era assim tão miúdo. Já tinha 18 anos. E como aquela revelação tinha-lhe apanhado de surpresa, Artur ficou sem saber o que dizer. Miguel é que continuou o seu discurso.
— Eu não vou fazer nenhuma festinha mas combinei com uns amigos um jantarzinho naquele restaurante japonês ao pé do trabalho da Mónica. Vai ser só eu e mais três amigos mas eu gostaria muito que fosses.
— Eu?! — disse Artur surpreso. — Eu agradeço pelo convite mas eu acho que...
— Vai ser só um jantar! E eu sei que o Artur gosta de sushi.
— Sim! Eu gosto! — confirmou Artur e agora, mesmo ele detestando mentiras, era ele quem estava prestes a dizer uma. — É que eu já tenho outros planos para esta noite.
— Não faz mal! — disse Miguel e Artur ficou aliviado por ele não insistir. Mas depois do alivio, veio novamente a surpresa quando Miguel continuou a falar. — Depois desses outros planos, passa lá pelo restaurante. Nós vamos estar por lá. As vinte e uma trinta, pode ser?
E antes que Artur desse uma resposta, Miguel saiu do carro e foi a correr para dentro do prédio. Por momentos Artur ainda lá permaneceu-se parado. Arrependeu-se de não ter deixado bem claro de que não podia ir a esse jantar. Ou melhor, a questão não era o poder ir, era sim a vontade de ir. Apesar de já ter 18 anos e de se tornar um homenzinho, Artur não achava correcto essa aproximação. Afinal de contas ele era como se fosse um professor para o Miguel. E não era correcto um professor ir a um jantar de um aluno. Artur ainda pensou, mesmo ali, em escrever-lhe uma mensagem a dizer que não ia dar para ir mas mudou de ideias. Preferiu ir-se embora e esquecer o assunto.
CONTINUA...